por Leonardo Sakamoto
Muitas mulheres são vítimas de violência doméstica, preconceito no trabalho, enfrentam jornadas triplas (trabalhadora, mãe e esposa), não têm direito à autonomia do seu corpo – que dirá de sua vida, pressionadas não só por pais e companheiros ignorantes mas também por uma sociedade que vive com um pé no futuro e o corpo no passado. A qual todos nós pertencemos e, portanto, somos atores da perpetuação de suas bizarrices. Discutimos muito sobre as mudanças estruturais pelas quais o país tem que passar, citando saúde, educação, transporte, segurança, mas esquecemos dos problemas ligados aos grupos que sofrem com o desrespeito aos seus direitos fundamentais. Que não conhecem classe social, cor ou idade. Como as mulheres que são maioria – e minoria.
Nesta quinta (25), celebra-se o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta contra a Violência à Mulher. Trouxe algumas ponderações que reuni nos últimos tempos sobre diversas formas de violência que praticamos diariamente para relembrar a data: (e para uma leitura mais aprofundada, recomendo sempre o blog Viva Mulher, da jornalista Maíra Kubik Mano)
- Dado Dolabella, que ficou conhecido por agressão e por ser enquadrado na Lei Maria da Penha, ganhou um R$ 1 milhão em um reality show após voto maciço de internautas e telespectadores. Um povo que premia um agressor de mulheres tem moral para reclamar de corrupção na política?
- Mesmo em cargo de chefia, mulheres têm que provar que são melhores do que os homens. Néstor morreu e houve gente que perguntou se Cristina teria capacidade de tocar o governo argentino sem os conselhos dele na cama. Fino…
- Temos uma mulher presidenta. Simbolicamente relevante, politicamente insuficiente. São poucas as governadoras, prefeitas, senadoras, deputadas, vereadoras. Mas também CEOs, executivas, gerentes, síndicas de condomínios. Falta criar condições para que elas cheguem lá. Ou alguém acha que isso vai ocorrer por geração espontânea?
- A Suprema Corte tem 11 assentos. Só dois deles pertencem a mulheres, infelizmente. Já ligaram a TV Justiça em horário de transmissão do STF? Testosterona demais, sabe?
- Mulheres são maioria nas redações, mas não em cargos de alta chefia – muitos menos entre os editorialistas, que redigem a opinião de veículo de comunicação.
Pesquisas apontam que a violência doméstica não é monopólio de determinada classe social e nível de escolaridade. Homofobia e machismo são problemas que ocorrem em todo o continente, da mexicana à chilena, passando pela brasileira. OK, no nosso caso é melhor colocar a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais etc). Tem sido uma luta inglória, mas necessária, tentar abrir a cabeça da sociedade.
- Para muita “gente de bem”, pior que prostituição infantil é mulher adulta ter direito ao seu próprio corpo. Até porque, cada coisa no seu lugar: mulher é historicamente objeto e menina com peito e bunda já é mulher. Mesmo que brinque de boneca.
- Lembram o que aquele juiz tosco, de Sete Lagoas (MG), disse ao rejeitar punições baseadas na Lei Maria da Penha?: “Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”(…) Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões.” Se a mãe dele era viva, nesse momento, morreu de desgosto.
- Pau-a-pau com o arcebispo de Olinda e Recife José Cardoso Sobrinho, que excomungou, no ano passado, os médicos envolvidos em um aborto legal realizado em uma menina de nove anos, grávida de gêmeos do padrastro que a estuprava desde os seis anos de idade. Ela tinha 1,36 m e 33 quilos. Deus Pai!
Em 1983, o ex-marido de Maria da Penha atirou nas costas da esposa e depois tentou eletrocultá-la. Não conseguiu matá-la, mas a deixou paraplégica. Muitos anos de impunidade depois, pegou seis anos de prisão, mas ficou pouco tempo atrás das grades. A sua busca por justiça tornou-a símbolo da luta contra a violência doméstica. A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006 para combater a violência doméstica contra a mulher, sofre constantes ataques. Interpretações distorcidas de juízes, falta de orçamento para colocar políticas de prevenção em prática, tentativas de diminuir a força dessa legislação. Inacreditável? Que nada! Viva o Brasil chauvinista e patriarcal, que usa a justificativa da “defesa da honra” para honrar a própria ignorância e covardia.
- A opressão realmente adota formas diferentes. Muitas vezes travestidas de um simples costume. Por exemplo, forçar a namorada a adotar o sobrenome após o casamento é bisonho. Uns vão chamar de tradição – esquecendo que tradição é algo construído, muitas vezes pela classe (ou gênero) dominante. Mas, pense pelo outro lado, se for para trocar, que tal invertermos e os homens começarem a adotar os sobrenomes de suas esposas?
- Uma pesquisa identificou que homens que trabalham no Brasil gastam 9,2 horas semanais com afazeres domésticos, enquanto que as mulheres que trabalham dedicam 20,9 horas semanais para o mesmo fim. Com isso, apesar da jornada semanal média das mulheres no mercado ser inferior a dos homens (34,8 contra 42,7 horas, em termos apenas da produção econômica), a jornada média semanal das mulheres alcança 57,1 horas e ultrapassa em quase cinco horas a dos homens – 52,3 horas – somando com a jornada doméstica. E os caras ainda dizem que trampam mais do que elas, vejam só.
- No Brasil, cantar um “tapinha não dói” tornou-se hit cult.
É o que eu já disse aqui antes: todos nós, homens, somos sim inimigos até que sejamos educados para o contrário. E tendo em vista a formação que tivemos, é um longo caminho até alcançarmos um mínimo de decência para com o sexo oposto.
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Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Já foi professor de jornalismo na USP e, hoje, ministra aulas na pós-graduação da PUC-SP. Trabalhou em diversos veículos de comunicação, cobrindo os problemas sociais brasileiros. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Postado por Familia meu maior patrimonio
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